“Quem é dono desse bêco?
Quem é dono dessa rua?
De quem é esse edifício?
De quem é esse lugar?…”
(Rio 40 Graus, Fernanda Abreu)
Quinta-feira,
13h00.
Os ataques continuam pela madrugada de quinta-feira. Os números dos ataques terroristas já passam de quarenta. A violência já mudou por completo a paisagem das ruas na maioria dos bairros, sendo na Zona Norte o mais figurativo choque. Nossa equipe neste dia tem a simples missão de acompanhar esses inúmeros casos que pipocam a cada instante.
A quinta-feira tratou de ajeitar isso para nós.
13h20
O calor está de volta à cidade e dentro do nosso carro o ar condicionado perde a todo instante a luta contra a temperatura alta. Talvez a culpa seja nossa mesmo. Abrimos os vidros a todo momento para ouvir os helicópteros da polícia que percorrem o espaço aéreo de toda a cidade na ânsia de tentar localizar algum atentado pelo distrito carioca. Os voos abafados pela Zona Norte pintam de sinistro a atmosfera do nosso trabalho.
13h25
Em uma rua próxima da onde estamos no bairro da Tijuca, três moleques de aproximadamente dezesseis anos, com seus chinelos de dedo, descem a ladeira que liga a comunidade do Salgueiro com o ponto final da linha 409, dos ônibus que ligam os cofins do Jardim Botânico com o bairro tijucano. Um deles segura uma garrafa de gasolina que imeditamente inicia um banho na lateral do veículo estacionado. Os outros dois estão armados com pistolas e ameaçam quem está próximo. Logo em seguida, em poucos segundos, um fósforo é riscado fazendo a chama que nasce lamber o metal do ônibus e as costas do trocador que descansava dentro do carro. Em poucos minutos o ônibus é totalmente encoberto pelo fogaréu, naquele calor senegalês do Rio de Janeiro.
13h30
O trio corre ladeira acima, retornando pouco depois com quinze amigos armados com fuzis. Usam toucas ninjas, outros estão com o rosto à mostra, naquela coragem absurda e desmedida de bandido. Eles olham em direção ao ônibus que parece uma grande tocha no ponto final da linha Saens Pena. Eles riem, fazem ameaças com as armas, se exibem para todos que estão ali próximo. Voltam correndo na direção da comunidade do Salgueiro pela mata da Floresta da Tijuca. Um carro da polícia se aproxima em alta velocidade, mas sem tempo de os pegar.
13h39
O funcionário da empresa é levado para o Hospital. As costas estão queimadas. A camisa que pegava fogo foi retirada por um mecânico que assistiu a toda barbárie. A roupa ficou no chão, preta.
15h00
O carro de reportagem estanca quando vemos o corpo de bombeiros. O veículo fica no meio do trânsito e nossa equipe corre em disparada pelos carros em direção à ladeira onde bombeiros trabalham. Vejo pelo canto de olho que as pessoas da rua começam a correr na direção oposta a nossa. O medo por todo lugar.
Vejo uma ladeira enorme e a primeira coisa que me recordo é que tive uma péssima noite depois da quarta-feira. A noite mal durmida e meu estado zumbi é o primeiro sinal que terei dificuldades naquelas horas. Dane-se, penso num ato interior de ousadia humana. Às favas meu cansaço. O cinegrafista e eu damos um pique em direção a um ônibus repleto de fumaça no fim da rua. O cara do meu lado carrega uma câmera de… sei lá, quinze, vinte quilos? Na minha mão, um bloco e um microfone. Não tem nem comparação.
Reparo que o ônibus na minha frente é o mesmo ônibus que eu subo todos os dias quando preciso cruzar a cidade. Fico imaginando quantas pessoas pisaram ali dentro, se espremeram entre os poucos lugares e assentos no dia a dia. As cinzas voam sobre nossas cabeças com o vento, num sombrio compasso da natureza. Os vidros explodidos, o parachoque destruído, os bancos retorcidos, os pneus derretidos. Está tudo ali. No chão, uma nota de dez reais chama a nossa atenção. Apenas uma parte dela. E também apenas uma palavra da cédula se mantém possível de ler.
– Sobrou uma nota de dez reais.
– Moeda forte, escreve aí. – rimos.
– Dá pra ler algo ainda nela.
– O que?
– Deus.