Publicado por: diariodebloco | novembro 28, 2010

o fogo não para

“Quem é dono desse bêco?
Quem é dono dessa rua?
De quem é esse edifício?
De quem é esse lugar?…”

(Rio 40 Graus, Fernanda Abreu)

Quinta-feira,
13h00.

Os ataques continuam pela madrugada de quinta-feira. Os números dos ataques terroristas já passam de quarenta. A violência já mudou por completo a paisagem das ruas na maioria dos bairros, sendo na Zona Norte o mais figurativo choque. Nossa equipe neste dia tem a simples missão de acompanhar esses inúmeros casos que pipocam a cada instante.

A quinta-feira tratou de ajeitar isso para nós.

13h20

O calor está de volta à cidade e dentro do nosso carro o ar condicionado perde a todo instante a luta contra a temperatura alta. Talvez a culpa seja nossa mesmo. Abrimos os vidros a todo momento para ouvir os helicópteros da polícia que percorrem o espaço aéreo de toda a cidade na ânsia de tentar localizar algum atentado pelo distrito carioca. Os voos abafados pela Zona Norte pintam de sinistro a atmosfera do nosso trabalho.

13h25

Em uma rua próxima da onde estamos no bairro da Tijuca, três moleques de aproximadamente dezesseis anos, com seus chinelos de dedo, descem a ladeira que liga a comunidade do Salgueiro com o ponto final da linha 409, dos ônibus que ligam os cofins do Jardim Botânico com o bairro tijucano. Um deles segura uma garrafa de gasolina que imeditamente inicia um banho na lateral do veículo estacionado. Os outros dois estão armados com pistolas e ameaçam quem está próximo. Logo em seguida, em poucos segundos, um fósforo é riscado fazendo a chama que nasce lamber o metal do ônibus e as costas do trocador que descansava dentro do carro. Em poucos minutos o ônibus é totalmente encoberto pelo fogaréu, naquele calor senegalês do Rio de Janeiro.

13h30

O trio corre ladeira acima, retornando pouco depois com quinze amigos armados com fuzis. Usam toucas ninjas, outros estão com o rosto à mostra, naquela coragem absurda e desmedida de bandido. Eles olham em direção ao ônibus que parece uma grande tocha no ponto final da linha Saens Pena. Eles riem, fazem ameaças com as armas, se exibem para todos que estão ali próximo. Voltam correndo na direção da comunidade do Salgueiro pela mata da Floresta da Tijuca. Um carro da polícia se aproxima em alta velocidade, mas sem tempo de os pegar.

13h39

O funcionário da empresa é levado para o Hospital. As costas estão queimadas. A camisa que pegava fogo foi retirada por um mecânico que assistiu a toda barbárie. A roupa ficou no chão, preta.

15h00

O carro de reportagem estanca quando vemos o corpo de bombeiros. O veículo fica no meio do trânsito e nossa equipe corre em disparada pelos carros em direção à ladeira onde bombeiros trabalham. Vejo pelo canto de olho que as pessoas da rua começam a correr na direção oposta a nossa. O medo por todo lugar.

Vejo uma ladeira enorme e a primeira coisa que me recordo é que tive uma péssima noite depois da quarta-feira. A noite mal durmida e meu estado zumbi é o primeiro sinal que terei dificuldades naquelas horas. Dane-se, penso num ato interior de ousadia humana. Às favas meu cansaço. O cinegrafista e eu damos um pique em direção a um ônibus repleto de fumaça no fim da rua. O cara do meu lado carrega uma câmera de… sei lá, quinze, vinte quilos? Na minha mão, um bloco e um microfone. Não tem nem comparação.

Reparo que o ônibus na minha frente é o mesmo ônibus que eu subo todos os dias quando preciso cruzar a cidade. Fico imaginando quantas pessoas pisaram ali dentro, se espremeram entre os poucos lugares e assentos no dia a dia. As cinzas voam sobre nossas cabeças com o vento, num sombrio compasso da natureza. Os vidros explodidos, o parachoque destruído, os bancos retorcidos, os pneus derretidos. Está tudo ali. No chão, uma nota de dez reais chama a nossa atenção. Apenas uma parte dela. E também apenas uma palavra da cédula se mantém possível de ler.

– Sobrou uma nota de dez reais.
– Moeda forte, escreve aí. – rimos.
– Dá pra ler algo ainda nela.
– O que?
– Deus.

Publicado por: diariodebloco | novembro 26, 2010

de colete na cidade

“O segredo do tempo é consumi-lo sem percebê-lo.
É fingir-se infinito para não o vermos passar
É fazer-se contar em anos em vez de momentos
Relógio, despertador, cronômetro, calendário
Tudo engodo para imaginarmos prendê-lo, controlá-lo…”

(Anônimo)

Quarta-feira,
16h30

Os policiais começam a se movimentar de forma curiosa. Ao tentar pedir informação para o inspetor da DH, ele monossilaba algumas coisas. Não ajuda muito, mas dá uma dica ao informar que está com outra ocorrência ali próximo. Outro corpo ligado a um suposto arrastão. Entramos correndo no carro em direção ao próximo fato.

A cidade não para.

16h59

Enfrentamos um trânsito gigante até o ponto, também na Zona Norte. É uma rua residencial, cheia de casinhas amarelas, embora humildes, mas com jardins bem cuidados. Lembro do condomínio onde minha avó tinha uma casa no bairro da Ilha do Governador. A saudade bate ligeiro até o momento em que esbarramos com o comboio da polícia civil. Os mesmos rostos, os mesmos legistas da última hora, desta vez, em um novo caso. Dessa vez, a vítima é um homem de meia idade que tivera seu corpo desovado em um carro roubado, também em um arrastão. A família da vítima está ali, bem próxima da gente. Tentamos uma aproximação, mas eles se mostram arredios. Um deles briga por estar sendo filmado. Pelo estado do corpo da vítima – braço quebrado, marcas de tortura com arame – dá pra ter noção da dualidade entre os criminosos e aquele assassinado.

Deixamos pra lá chegando a muitas conclusões. Enfim.

17h40

Duque de Caxias é um município com maior índice de morte de jovens abaixo de 21 anos no estado. Os dados são de uma pesquisa bem recente das Organizações das Nações Unidas sobre a Baixada Fluminense. A cidade é violenta, sim. Mas tiroteio em pleno centro urbano, onde o asfalto mistura apenas o limite entre a sede da Prefeitura e o Teatro Municipal, já é demais. E é lá que pousamos nossa equipe ao avistarmos policiais fechando as ruas e avenidas num controle militar bem austero. De arma em punho, eles mandam motoristas desacelerarem, no rosto, a expressão de controle e ódio. Estão atrás de bandidos que acabaram de realizar um grotesco tiroteio na cidade. Até uma bomba caseira, dentre muitas daquele dia, teria sido usada contra os prédios municipais. Nosso carro para cantando pneu. Pulamos pra fora vestindo coletes à prova de bala. Paro três segundos para realmente entender que estou usando um colete à prova de balas naquele lugar. Olho em volta e vejo prédios comerciais, inúmeros deles. A parede de concreto revela o coração empresarial de Duque de Caxias. Ok. Passado o lapso momentaneo, corremos entre lojas filmando toda a movimentação. Na mão de uma menina na porta de uma sapataria, não deixo de notar uma folha de papel rabiscada:

“O RIO PEDE PAZ”

Publicado por: diariodebloco | novembro 26, 2010

um passo de cada vez para guerra


imagem Agência O DIA

Quarta-feira,
13h40.

Saímos da Redação ouvindo o rádio ainda apitar em nossos ouvidos. A equipe está animada mesmo para dias como aqueles. É preciso um pouco dessa adrenalina para fazer movimentar a engrenagem da criatividade, da superação e da atenção no corpo. Estar na rua cobrindo um dia de caos não é fácil, mas depois de horas contabilizando ataques e registrando atentados de diferentes formas, ficamos meio pelejados já. O couro batido, essas coisas. O carro voa pela Avenida Brasil – ou tenta, devido ao trânsito pesado da via expressa. Pelo horário, o fluxo não deveria ser aquele, mas a cidade está vendo sua rotina mudar devido à violência espalhada. Pessoas saem mais cedo do trabalho, estudantes tem suas aulas encerradas, todo mundo decide voltar pra casa antes da hora normal. 50 mil pessoas em média estão se movendo no horário atípico.

14h29

Chegamos ao ponto marcado em algum lugar muito longe da Zona Norte. Avistamos um carro enfumaçado, que naquele momento é praticamente só o esqueleto da carcaça. O veículo no meio da pista paralela à avenida, na entrada de uma favela, denuncia: mais um atentado com fogo. Dessa vez o crime organizado foi mais prático. Bastou alguns minutos ouvindo os donos do carro contarem a história para o enredo se formar na cabeça. Eles explicam que foram avisados pela seguradora sobre o encontro da PM com o carro queimado. Imediatamente são cercados por nossos microfones.

O dono é um pastor evangélico, foi roubado no dia anterior durante um arrastão. Os bandidos apenas levaram o carro para fora da favela e atearam fogo. Fechamos a entrevista com um “Deus segura quem…”. Não ouço o resto. O rádio apita, mais um atentado em outro canto da cidade. Corremos erguendo câmera, tripé e fôlego.

15h45

Ponho a cabeça para fora do carro e vejo o céu encorpando. As nuvens pesadas já começam a tentar intimidar uma chuva chata e pesada. Está quente, abafado, uma merda. O motorista decola e chego a conclusão que não seríamos nada sem um bom volante naquela hora. Ele ri quando a gente elogia. A informação que temos naquele momento é de um arrastão, mas não se sabe se teria outro carro incendiado no meio disso tudo. Também temos que cobrir uma coletiva da Secretaria de Segurança. Mil coisas em poucas horas, é o único jeito. Nossa equipe se aproxima da região carente de Vigário Geral para ganharmos acesso a outra região da cidade. Estamos próximos da Estação de Trem da concessionária Supervia. Vejo um carro de socorro do Samu mais à frente. O motorista enxerga um carro da polícia civil junto. O velho beliscão estala junto da sensação de algo no ar. Decidimos nos aproximar.

A blitz se revela como um crime. Mais um. Basta alguns passos para enxergar a cena do crime. Um carro Fiat com um homem de boca aberta e olhos semicerrados. Na testa, dois tiros. Cheguei a pensar que eram três, outro na barriga, devido a enorme poça de sangue. Há gente da polícia civil por todos os lados, de legistas a inspetores da Divisão de Homicídios. Recolhemos algumas informações sobre a pessoa morta. Comerciante, teria reagido ao tentar fugir de um ataque de criminosos da favela de Vigário Geral naquele ponto. Aliás, estamos a pouquíssimos metros da comunidade, me lembro, tentando buscar refúgio em uma parede. Os bandidos teriam levado um caminhão durante a ação. Em alguns segundos, o delegado alerta.

– Tem criminoso apontando arma pra cá de cima da avenida. Cuidado aí.

Publicado por: diariodebloco | novembro 26, 2010

reflexão no silêncio

Quarta-feira, 22h25.

A chuva despista meu olhar. É noite. A novela já acabou faz tempo e o eco das televisões ligadas pela cidade não reproduzem mais as falas dos atores. Abro a janela do carro de reportagem e o calor do verão carioca se traduz em um abafado chuvoso no meu rosto. No breu do subúrbio do Rio, as luzes dos giroflex dos carros de polícia que seguimos pela Avenida Brasil colore a cidade em cores estroboscópicas. A cidade está deserta. As calçadas, as ruas, o comércio. Tudo fechado. E não é por causa do horário não, é por causa dos fatos.

Passeio meu olhar pelas anotações do dia num bloquinho adaptado com folhas de rascunho. Não fico pasmo com que leio nos rabiscos do dia. Ali, naquele momento, me sinto parte de um todo já anestesiado em nosso estado. Como não me impressiona o que vejo, acompanho, anoto, leio, transmito? Somos todos reprodutores do caos, inertes à injeção dessa adrenalina viral que qualquer mortal se preenche pelo que passamos. Às vezes paro e penso que nem a própria população se desfaz nessa sensação. O medo e o terror já foram tocados por tanto tempo no Rio que o conta gota da violência amorteceu as dores da guerra. Os ataques não beliscam mais. Estamos banalizados no costume de cobrir guerra urbana, é verdade. Mas algo nesta semana soou diferentes mesmo pros lead’s policiais dos jornais e das bombásticas chamadas televisivas.

O grande dia tinha chegado.

A onda de violência cresceu em ritmo concomitante. Desde o final de semana, os arrastões deram lugar aos carros sendo queimados durante os roubos. Dos carros queimados em arrastões, para carros queimados em qualquer ponto da cidade, por qualquer motivo. Dos carros para os ônibus foi um pulo. De veículos em combustão para bombas em lugares públicos um passo muito menor e mais rápido.

De um pulo, as viaturas do comboio que seguimos estancam de repente em algum canto do bairro do Méier. Nossa atenção se prende à frente e estacionamos o carro para averiguar. Os policiais chegaram até o batalhão do bairro e trocam informações com seus colegas. Na rua, apenas um bar ainda aberto, com poucos clientes se embebedando. A conversa do botequim se enfia num maciço hilariante sobre futebol. É quarta-feira de noite, dia de jogo. Nada como o futebol num dia desses. Para eles, penso. A chuva aperta e buscamos refúgio numa marquise fuleira. A água me ensopapa o colarinho e meu bloco vai embora, dando ‘tchau’ em pedaços.

Fico ali vendo a água encharcar nossa equipe. Um trovão preenche o céu e os segundos parecem lentos demais para um dia como aquele. A memória cavuca as últimas horas e elas retornam de repente remontando nossos passos.

Publicado por: diariodebloco | novembro 21, 2010

reféns – final

O carro não tinha sirene. É verdade. Mas o som forte do motor deixava bem claro quem tinha acabado de chegar. O Batalhão de Forças Especiais do Rio de Janeiro, o BOPE, havia acabado de entrar em cena.

Não me recordo bem se na época se Tropa de Elite já havia estourado nos cinemas ou pelos DVDs avulsos da Uruguaiana. Mas uma coisa era clara. A primeira reação do público foi uma incrível e longa salva de palmas. Os estalos das mãos eram intensos e energéticos. Aquela reação estava engessada numa mistura midiática do livro-filme com a repercussão do caso. O BOPE sempre foi conhecido por lidar com situações em que há reféns em posse de bandidos perigosos. Mas há alguns meses aqueles caras de preto eram uma personificação do heroísmo nacional. É dificil viver em um país onde não há simbolismo o bastante para uma geração. No Rio de Janeiro, o BOPE era a solução do povo que morava em redormas de vidro. O grito dos excluídos da classe média alta que viviam com seus Hondas Civic. No mais, em pleno domingo de manhã, um prédio ser evacuado às pressas por causa de um sequestro era um prato cheio e suculento para os curiosos de plantão. Com a quantidade de gente reunida, qualquer ato falho seria meticulosamente esganiçado. Os homens fardados sabiam disso.

Me esgueirei a enxergar a ação de um capitão que conduzia a ação. Um senhor de aproximadamente 60 anos, com uma boina preta, ditava algumas regras para os policiais. Os caveiras estavam no controle e os convencionais PMs sabiam disso. Deve ser estranho perder o controle quando se é a segurança pública primordial. Pensei, assim que um estalido explodiu nos fundos do prédio. Câmeras voaram para o alto. Fotógrafos explodiam os flashes. Eu, bom, eu apenas fitava o que parecia impossível.

Dois policiais gesticulavam do alto do apartamento, de frente para a praia, atrás dos vidros da janela. Os reféns estavam a salvo e, os bandidos, devidamente imobilizados. A Imprensa tomava os devidos cuidados de sugar os detalhes e as informações dos oficiais. Os telejornais iam ganhando flashes ao vivo sobre toda a história, enquanto outros colegas entravam ao vivo para suas rádios. Alguns minutos depois, a família refém estava na rua, saindo aos passos de um cortejo militar altamente reforçado. Era uma moça e duas senhoras. Sorriam tímidamente enquanto todos por trás do cordão de isolamento gritavam. Notei que um pastor da Igreja Universal que havia chegado para tentar ajudar na negociação dos presos estava atônito. Não resolveu muita coisa.

Naquele domingo, o nosso jornal havia ganhado sim uma matéria com os policiais, os moradores e até o parente de um dos reféns. Eu também havia ganhado muita coisa. Um misto de dever cumprido – no alto do clichê – e uma dor muscular terrível. Mas aqueles homens do BOPE ganharam muito mais. Uma segunda salva de palmas que ecoava pelo bairro.

O barulho da vitória, do reconhecimento e da população bradando.

Publicado por: diariodebloco | novembro 20, 2010

reféns – parte 1

1. 2. 3. Respira. 1. 2. 3. Respira.

O folêgo já ia sumindo depois de 11 quilômetros. O dia estava lindo, com um sol senegalês e um céu incrivelmente azul contemplando toda a cidade. O dia era perfeito para se descansar. Era domingo e, ora bolas, eu não estava de plantão. Naquela época eu mantinha meus raros dias em que não estava na labuta aproveitando os segundos de uma corrida pela orla. Viver em cidades praianas nos permite essas bobas felicidades. Meus pés inchados dentro do tênis iam descendo a ladeira ao compasso das palavras de Michael Bublé.

“Baby, don’t pretend that you don’t know it’s true
Cause you can see it when I look at you…”

E então, a sensação. Aquela mesma sensação de todas as horas em que me pegava fitando o inesperado. A passada havia me levado novamente para o largo calçadão da praia e do outro lado da rua, uma multidão assustada. A gente pensa em muitas coisas antes de presumir a verdade de um fato. Uma multidão qualquer na cabeça de um leigo pode ser desde um acidente de carro até um jogo de capoeira. Pra mim era, simples e basicamente, aquela sensação.

Ainda suado me aproximei interpretando o que ia vendo. Um prédio próximo havia sido cercado por carros de polícia e dezenas de moradores, envoltos ainda em seus pijamas, estavam aglomerados atônitos na frente da portaria. Aproximei de alguém e perguntei.

– O que houve?
– Reféns, amigo. Tem uma família refém em um dos apartamentos!

Acho que demorou cinco minutos entre o meu banho em casa e estar novamente naquele lugar. Segurando um gravador e o famigerado bloco de anotações, me aproximei de um PM que fazia a segurança do perímetro da portaria isolada. Meu cabelo molhado chamava a atenção.

– Quantas vítimas?, perguntei tentando soar o máximo possível concreto porque estava ali em pleno domingo no limiar do meu vício.
– São quatro. Ou três. Não temos certeza.

Dei dois passos além do cordão de isolamento.

– Você não passa.
– Imprensa.
– Tanto faz.
– Eu vou entrar ao vivo na Rádio! Por favor, me quebra o galho.
– Amigo, você que sabe. Não é seguro.

Lá estava eu no máximo da minha insegurança tentando driblar a simpatia militar. Ganhei o acesso com a condição de que uma bala perdida de um ladrão de prédio na minha testa poderia ser um prêmio extremamente feliz. A portaria estava tomada por policiais que entravam e saíam. Então surgiu o resto da Imprensa e uma sirene bem conhecida.

continua.

Publicado por: diariodebloco | novembro 6, 2010

o vale do sistema

Dia 5 de novembro talvez fique na memória.

Ou não. Tudo depende do Jornalismo. Ou não. Talvez dependa mais de mim, ou das circunstâncias do factual. A sexta-feira foi o dia em que Tropa de Elite 2 brincou de me mostrar onde moro, onde vivo, com que lido. A história me fisgou em muitos momentos pela dramaturgia bem talhada, mas dois momentos cruéis na ficção em especial já foram cenários bem conhecidos na nossa realidade. A morte de um jornalista e os bandidos na favela. Bandido é bandido. Seja miliciano, seja traficante. Aqui poderia entrar a ótica da política, com os marginais do pleito público, mas minha condição é me ater ao tráfico de drogas.

24 horas antes nossa equipe de reportagem subia uma das maiores ladeiras que eu vi na minha vida. Vá, não vi muitas de fato. Essa subida bem íngreme eu já bem conhecia porque estive nela alguns meses atrás contando mortos após um deslizamento bem midiático. Bingo para quem leu Morro dos Prazeres nas entrelinhas. Nossa missão era mostrar um impasse entre moradores e a Prefeitura em relação às casas que seriam demolidas, o recebimento do aluguel social e todo o imbróglio municipal. Microfone e câmera ligados, equipe concentrada. De repente, um barulho de moto rasgando ao longe.

Segundo depois pude contar seis tipos variados de traficantes motorizados circulando por nós numa retumbante ameaça velada. Não falavam conosco, apenas, passavam. Eram garotos no máximo dez anos mais novos que eu, em garupas duplas, às vezes individuais. Seguravam uma, às vezes, duas pistolas na cintura retendo toda a rispidez que lhes convém. As motos mais caras que o meu carro. Os rostos presos numa expressão vazia, sempre atrás de um óculos escuros e um boné engraçado.

“F-u-d-e-u”, pensou eu e nossa equipe em um uníssono mental.

Lá no fundo – bem no fundo da nossa positividade dramática – que o risco de algo acontecer era bem pequeno naquela situação. A presidente da Associação de Moradores estava conosco, ela já havia devidamente avisado que iriamos gravar no Morro. Traficantes menores não tomam iniciativa sem ordens claras de quem manda no pedaço. Mas mesmo assim, eles fizeram questão de cruzar conosco umas trinta vezes nos quarenta minutos que estivemos dentro do complexo. O Morro dos Prazeres é um vale que teremos que visitar muitas vezes, mas nunca sabe-se se por bem ou por mal. Não se sabe se no futuro será um novo deslizamento, ou moradores brigando por justiça social.

Mas motos sempre estarão lá, porque o sistema, amigo, é foda.

Publicado por: diariodebloco | novembro 3, 2010

desculpas imaginárias

22h15, fim de feriado.

Ontem, em meio a um início de semana desequilibrado, sem nada funcionando, órgãos oficiais fechados, assessorias fora do ar – enfim, como todo feriado prolongado – uma notícia pairou no ar de forma subjetiva e invisível. Entre uma ligação e outra na apuração de uma notícia, o papo com a fonte policial pelo telefone caiu sobre um mórbido assunto.

– Tá sabendo da criança morta?
– Não…
– Pois é. Acharam o corpo de uma menina dentro da lata de lixo.
– Nossa. Quando?
– Agora pouco. Ta lá ainda.

O pouco da história de Camila Evangelista, de apenas dez anos, moradora do Morro da Providência, veio de forma lenta e morosa pelo fone. O policial descrevia com uma sutileza macabra a situação do cadáver. A nossa profissão por si só traz aquele espírito frio, que anseia sempre voraz pelo frescor da manchete, mas o assunto era triste e revoltante em sua totalidade. Desliguei. E fiquei pensando no assassinato. Camila, naquele dia apenas conhecida como “o corpo de uma garotinha na lata de lixo”, se desfazia entre outras notícias de última hora. Coisas do jornalismo.

Hoje, a informação de que um homem confessou o assassinato está por todos os lados. Embrulhou a morte numa desculpa inocente e doente. Pagou R$ 20,00 para fazer sexo oral com a criança. Ela gritou, ele a matou. Com uma faca de serra. Simples assim. Enquanto lia a notícia pelo notebook, a televisão mostrava a história de Jack, o Estripador. O Discovery Channel é formidável nessas horas. Não pude deixar de notar. Embora o crime seja o mesmo, na Inglaterra antiga o lendário assassino nunca descoberto não se perfazia em desculpas tão tolas e impossível de engolir. Pela ficção, eles são criativos. Na vida real, mundana e sem graça, assassinos se igualam apenas numa coisa.

A burrice de imaginar.

Homem confessa ter matado e estuprado menina no Morro da Providência

Publicado por: diariodebloco | novembro 2, 2010

paz aos poucos

Faz tanto tempo, mas não me importo em voltar nesse capítulo.

No “day after” da implantação da Unidade de Polícia Pacificadora no Morro dos Macacos, em Vila Isabel, nossa equipe foi até o local medir sua temperatura. Eu nunca havia entrado na favela até aquele dia. Na entrada do morro, logo pela pracinha num dos acessos, relembrei muito dos posts escritos logo no início do blog. A cena de guerra estava novamente presente ali, porém, por outro ângulo. Um referencial mais sombrio. O ambiente estava tomado por dois elementos cênicos bem paradoxais. Um, dezenas de homens do BOPE fortemente armados, seus fuzis e três blindados repousando num conjunto sinistro de veículos estacionados. Outro, homens livres bebericando cerveja num bar, que por sua vez soava uma samba terrivelmente alto e melódico. Contraste. Paz e guerra. Tudo ali. Como eles dizem na gíria, “junto e misturado, mano”.

Gravamos a passagem que citava exatamente o oportuno desafio da Secretaria de Segurança do Rio em cercar os morros mais complexos da alça Zona Sul-Zona Norte, entre a orla e a Grande Tijuca. Pro público, apenas uma informação. Na política, o promissor debate da segurança pública, ainda mais numa cidade como o Rio. No exato momento em que a câmera registrava as palavras do OFF, um estrondo.

– BLAM!

Voltei minha atenção para trás como se procurasse o pior. Quando notei, um portão batido violentamente contra uma parede. De dentro de um barraco saiu um sujeito moribundo e embriagado. Careca, tatuagens medonhas, roupa estranha. Seus olhos vermelhos fitavam nossa equipe e num compasso constrangedor, veio cambaleando aos poucos até nós. Parou lentamente ao lado do microfone, olhou-nos de cima a baixo fazendo surgir um ódio conhecido. Enxerguei ali raiva, enxerguei revolta, enxerguei desespero. De repente, virou-se e desatinou a caminhar em direção ao bar. Segundos lentos. Minutos muito mais. O ambiente no Morro dos Macacos ainda estava inflamado. Pelo radinho, mudamos a rota. Centenas de homens do BOPE e o espírito de paz ainda acordando. Aos poucos. Mas acordando.

Publicado por: diariodebloco | abril 11, 2010

vida alheia salvar

Morro dos Prazeres, Santa Teresa.

No dia em que subimos Santa Teresa em busca de informações sobre os mortos, vi muitos bombeiros circulando no local. Eles não paravam, iam pra lá e pra cá a todo momento segurando sempre alguma coisa. Ora uma pá, ora algum objeto repleto de lama. As horas de cobertura da nossa equipe no Morro dos Prazeres foram imensas, o que me ocasionou algumas situações adversas. Em determinado momento esbarrei em um grupo de bombeiros almoçando. Homens e mulheres cansados, se alimentando em quentinhas. Eles estavam em volta de um carro picape da corporação cheia de garrafas de água mineral e isopores com comida. No raro momento de pausa nos trabalhos de busca dos corpos, eles conversavam, riam e esqueciam por minutos o cheiro da morte e da destruição à sua volta.

Me aproximei e puxei conversa, sem caneta, bloco de anotação ou microfone. Apenas um jovem ávido por mais histórias. Uma bombeira loira, de no máximo 25 anos, comia, pelo que pude notar, arroz com frango. Ela conversava com um colega de forma descontraída. Perguntei sobre a Força Nacional que não chegara até então à cidade e ela enfezou a cara.

– Pra que eles vem pra cá?! Eu hein.

Entendi a reação. Mudei de assunto rapidamente. Falamos um pouco sobre os trabalhos, a tristeza de estar ali, da dificuldade da chuva que chegava a todo momento e dos piores momentos. De forma leve, ouvi a história mais surpreendente daquele dia.

Sargento Basílio trabalhou em praticamente todas as buscas iniciais naquela semana. Ele estava no Morro do Borel, na Tijuca, quando a terra havia descido com força durante a chuva. Ele trabalhava com mais cinco bombeiros em um local de difícil acesso. Recolhiam de tudo dos escombros enquanto iam à caça de sobreviventes. Retiravam com as mãos da lama abajures, quadros, colchonetes, travesseiros, panelas, ursos, tijolos quebrados, vasos de planta. Basílio recebia informações rápidas em forma de gritos de familiares na tentativa de achar as vítimas. Do alto, a água ainda caía com força. Um GPS automático se formava em sua mente. O militar cavava um buraco em volta de uma espécie de telhado quando um estrondo se ouviu. O barulho, como um trovão, veio junto do tremor. A terra se deslocou como uma avalanche em baixo dele e uma camada inexplicável de terra tomou todo o seu corpo.

Basílio não abriu os olhos. Não dava. A primeira coisa que passou em sua cabeça foi: Morri. O sentimento simples e rápido, tenaz demais na morbidade da situação, estacionou em sua cabeça enquanto mais gritos começaram a ecoar lá em cima. Braços, pernas e tronco estavam imobilizados, numa posição como se tivesse caído na água, o corpo aberto, mas imóvel. A terra gelada encostava em toda a sua face. Úmida, parecia um cobertor espesso e frio.

Não sei o que passou-se na cabeça de Basílio durante aqueles minutos em que ficou soterrado. Mas o sargento viveu algo que quase 300 pessoas – feridos ou mortos – passaram durante as 70 horas de chuva, em diversos pontos do estado. O bombeiro se emociona, apoia o talher e dá uma risada tentando afastar a amargura. Ele me olha e sorri:

– É rapaz, com uma dor na costela danada.

Ele se levanta, e junto da menina loira, correm em direção à terra vermelha. Hora de cavar mais. Hora de se arriscar mais uma vez e mais uma vez e mais uma. Até o fim.

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